O panegirico do infante D. Pedro, um texto fantasma*

Diversos estudos sobre o século XV português referem-se a um texto conhecido pela designação, convencional, de Panegírico do infante D. Pedro [BITAGAP texid 16635]. Trata-se de um texto narrativo que inclui também a transcrição de cartas e outros documentos, maioritariamente consagrado à regência do infante D. Pedro, «o das sete partidas» [BITAGAP bioid 1067], e aos primeiros anos da governação plena do seu sobrinho, o rei Afonso V [BITAGAP bioid 1086]. Embora nunca tenha sido objeto de especial atenção, é normalmente considerado como um texto quatrocentista e, por isso, uma fonte potencialmente importante para a história política e cultural, lato sensu, da época. Um estudo da tradição textual deste Panegírico revela, porém, uma realidade diferente. Estamos, na verdade, perante um texto dos finais do século XVIII ou inícios do XIX, construído, isso sim, a partir de materiais do século XV. A análise do processo de construção e canonização desta peça constitui um excelente exemplo da necessidade permanente de questionar, problematizar e historicizar a transmissão textual e a tradição editorial de qualquer texto antigo. Podemos acompanhar as diferentes fases desse processo, e para isso nem precisamos de sair das bibliotecas e arquivos de uma única cidade: Évora.

O Panegírico do infante D. Pedro foi publicado por Luís da Silveira em 1944, no num. 79 da revista Ocidente [BITAGAP bibid 9315]. Como não raro acontecia à época (e, infelizmente, continua por vezes a suceder), Silveira deu informações escassas sobre o texto que estava a editar e respetivas caraterísticas materiais. Apontou a forma como chegou ao conhecimento deste texto, que foi através de uma nota de um artigo de Tejada Spínola, «História das ideias políticas em Portugal», e forneceu a cota do manuscrito em que se encontra, o códice CXXVIII 2/13, Olim CXXVIII/ 1-3, da Biblioteca Pública de Évora (BPE) [BITAGAP manid 2858]. Sobre as caraterísticas desta cópia, diz apenas que está encadernada «com outras peças, algumas das quais são igualmente panegíricos de figuras da história portuguesa» e que «não se trata de documento escrito em letra contemporânea de D. Pedro, mas não é de excluir a hipótese que estejamos em frente de cópia recente de documento antigo, como o fazem supor, entre outros indícios, certas características formais» (p. 205, negritos meus). A esta breve descrição, segue-se a transcrição do Panegírico, sobre cujos critérios nada é dito, mas que se percebe ser bastante conservadora, do tipo paleográfico (sem desenvolvimento de abreviaturas, com manutenção de todas as consoantes dobradas, etc.). Foi a esta edição que, direta ou indiretamente, recorreram todos quantos, posteriormente, se referiram a este Panegírico, sem que alguma vez se tenha procurado questionar ou aprofundar as escassas informações aí contidas. Que é, na realidade, o Panegírico do infante D. Pedro?

Atentemos no códice CXXVIII/ 2-13 da BPE. Trata-se, na verdade, de um conjunto de volumes avulsos a que foi atribuída essa cota comum. Um desses volumes, que tem o número de série CXXVIII/2-13e, é constituído por quatro manuscritos encadernados conjuntamente, mas previamente autónomos. Forneço em seguida uma descrição resumida do conteúdo destes quatro manuscritos, atribuindo-lhes uma numeração convencional:

CXXVIII/2-13e (1). Miscelânico. Escrito por uma mão de finais do século XVIII ou inícios do XIX.

Título: «Elogios Historicos e cronologicos dos reys de Portugal; com as leys, decretos, cartas, provisões, e alvaraz, q escreverão a respublica eccleziastica, e secular da cidade de evora: transcriptos e recopilados, tanto de huma cronica antiga manuscripta q trata dos ditos reys athe d. affonço o quarto; e acrescentada athe d. affonço 5º quanto dos mais monum.tos q se encontrão nos cartórios da camara; e catedral da dita cidade» (fol. 1).

Conteúdos:

  1. Excerto da versão condestabriana da Crónica Geral de Espanha de 1344, BITAGAP texid 15007, com o reinado de D. Afonso Henriques [fólios 1r-6r];
  2. Lei sobre moedas de D. Fernando I, de 1378, BITAGAP texid 8286 [fólios 6v-8r];
  3. Panegírico do Infante D. Pedro, BITAGAP texid 16635, que contém traslados de várias cartas e documentos do infante D. Pedro, de Afonso V de Portugal, de Juan II de Castela e de outras figuras, BITAGAP texids 16663, 15088, 16664, 16665, 15087 [fólios 8v-18r];
  4. Documentos e leis de D. Afonso V, D. João II, D. Manuel e D. Sebastião, a maior parte dos quais relacionados com Évora (p. ex., a descrição da batalha de Toro enviada ao concelho de Évora, BITAGAP texid 9462, uma carta de D. Manuel ao mesmo concelho, sobre a armada de Tristão da Cunha, e um alvará de D. Sebastião sobre uma mina de ouro descoberta no termo da cidade) [fólios 18v-29v].

CXXVIII/2-13e (2) Apontamentos sobre numismática, sem título. Letra de meados ou finais do século XVIII.

CXXVIII/2-13e (3)

Título: «As táboas, e mármores da primeira lusitania com as diferentes archias, e povos athé o império dos grêgos. Dedicadas ao excellentíssimo, e reverendíssimo senhor d. f. Manoel do cenáculo I. Bispo de Beja. Por Caetano Jozeph Lourênço do Valle Correa e Freitas. Jrmão de Joze Lourenço do Valle. Livro Primeiro». (fol. 1)

Letra de meados ou finais do século XVIII.

CXXVIII/2-13e (4)

Título: «As táboas, e mármores da primeira lusitania com as diferentes archias, e povos athé o império dos grêgos. Dedicadas ao excellentíssimo, e reverendíssimo senhor d. f. Manoel do cenáculo I. Bispo de Beja. Por Caetano Jozeph Lourênço do Valle Correa e Freitas. Jrmão de Joze Lourenço do Valle. Livro Segundo». (fol. 2)

Letra de meados ou finais do século XVIII.

Os restantes volumes que formam o conjunto CXXVIII 2/13 são também de meados ou finais do século XVIII, e têm temática arqueológica. Quase todos são, com certeza e por indicação expressa, autógrafos do já referido Fr. Lourenço do Vale, figura importante no nascimento da erudição epigráfica portuguesa, em contexto iluminista (cf. José da Encarnação e Ricardo Gaidão, «As informações epigráficas de Frei Lourenço do Vale», Homenagem a Justino Mendes de Almeida, Lisboa, 2015) e alguns são dedicados a Fr. Manuel do Cenáculo, seu contemporâneo e fundador, como é sabido, da Biblioteca pública eborense. Poderia pensar-se, por isso, que o manuscrito CXXVIII/2-13e (1) tivesse sido também copiado pelo mesmo Fr. Lourenço ou por seu irmão. A letra é, todavia, diferente e ligeiramente posterior. Quem foi, então, o copista e como foi constituído este manuscrito CXXVIII/2-13e (1)?

A primeira destas perguntas foi já respondida por Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara e Joaquim Antonio de Sousa Teles de Matos, autores do Catalogo dos Manuscriptos da Biblioteca Publica Eborense em 4 volumes [BITAGAP bibid 1414], cuja organização, como se sabe, é temática, o que dificulta a correta apreensão das caraterísticas de cada um dos manuscritos aí descritos. O volume II, dedicado à Literatura, descreve, a partir da página 36, os panegíricos constantes dos códices da biblioteca. O primeiro é precisamente o do infante D. Pedro, assim descrito:

Este Padre José Lopes de Mira [BITAGAP bioid 3258], cuja vida decorreu entre meados do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, é figura bem conhecida, sobretudo pelo seu trabalho de cópia e compilação de numerosos documentos antigos, grande parte dos quais relacionados com Évora, sua terra natal e de cuja Sé foi Beneficiado. Muitas destas cópias estão, atualmente, na Biblioteca Pública de Évora, mas também noutras instituições, nomeadamente na Biblioteca Pública Municipal do Porto [sobre a forma como estas últimas vieram parar ao Porto, veja-se: Primeiro roteiro da costa da Índia […] por D. João de Castro, Publicado por Diogo Köpke, Porto, Typographia Commercial Portuense, 1843, p. XXVI]. É especialmente conhecido pelo chamado Livro do Padre José Lopes de Mira, vasta compilação de documentação então existente em diversos arquivos eborenses e maioritariamente relativos a esta cidade e suas instituições, eclesiásticas e civis [Livro 146 do Arquivo Distrital de Évora (ADE), BITAGAP manid 2549]. Este Livro tem, de há muito, fornecido matéria para numerosos estudos e sido citado várias vezes [veja-se, p. ex., Gabriel Pereira, Estudos Eborenses, Vol. II, p. 341]. Apesar disso, não tem sido referida uma sua interessante caraterística. O Padre Lopes de Mira não se limitou, neste volume, a copiar documentos. Dividiu esses documentos por reinados e fez anteceder cada um desses reinados por resumos históricos, geralmente breves. O título geral do volume dá conta disso mesmo: «Elogios Historicos e cronológicos dos Reys de Portugal com as leys decretos provisões alvaras e cartas q~ escreverão ás Republicas Eclesiastica e Secular da cidade de Evora: tranzcrito e recopilado tudo, tanto de huma cronica antiga manuscrita q~ trata dos ditos Reys athe D. Affonço 5º, e existe no Cartorio da Camara; como dos mais papeis q~ se concervão no mesmo cartório, e no da Cathedral da dita cidade» [Livro 146 do Arquivo Distrital de Évora, fl. 1]. A análise do conteúdo do Livro do Padre Lopes de Mira revela que a «cronica antiga manuscrita» aqui referida é certamente uma cópia da versão condestabriana da Crónica de 1344 [BITAGAP texid 15007]. Os resumos históricos que antecedem cada um dos reinados e respetivas transcrições de documentos são, com efeito, baseados nas histórias de cada um dos reis de Portugal presentes nesta versão. Em alguns casos, o Padre Lopes de Mira limitou-se a copiar o texto da crónica medieval; noutros, acrescentou informações ou intercalou documentos, geralmente relacionados com Évora, no mesmo texto oriundo da crónica. Sucede isso, por exemplo, com o resumo histórico do reinado de D. Afonso IV, onde, entre outras informações, o Padre Mira acrescentou uma transcrição do conhecido epitáfio comemorativo da batalha do Salado que existe na Sé de Evora [Livro do Padre José Lopes de Mira, fl. 30r; Cf. o texto do epitáfio medieval em Mário Barroca, Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), Lisboa, Fundação para a Ciêencia e a Tecnologia e Fundação Calouste Gulbenkian, Vol. II, Tomo 2, pp. 1605-1614 (num. 592)]. Outro caso em que isso acontece é o resumo do reinado de D. Afonso V. Neste último caso, o Padre Lopes de Mira intercalou numerosas cartas no texto, já relativamente extenso, oriundo daquela versão da Crónica de 1344.  Ora, a partir de certa altura (fol. 70r), este resumo histórico do reinado de D. Afonso V coincide exatamente com o chamado Panegírico do infante D. Pedro, quer na parte copiada da Crónica de 1344, quer nos documentos intercalados, como se pode ver confrontado o início do Panegírico segundo a edição de Luís da Silveira com o texto respetivo do Livro do Padre José Lopes de Mira

Livro do Padre José Lopes de Mira, Livro 146 do Arquivo Distrital de Évora, fol. 70r

Este facto, juntamente com a identidade do copista de ambos os volumes (o próprio Padre Lopes de Mira) revela que existe uma relação entre o manuscrito CXXVIII/2-13e (1) da BPE, a partir do qual Luís da Silveira editou o Panegírico do infante, e o Livro do Padre José Lopes de Mira. E não se ficam por aqui as coincidências entre estes dois volumes: todo o restante conteúdo do manuscrito de Évora (história do reinado de D. Afonso Henriques e documentos de D. João II, D. Manuel e D. Sebastião) existe também no Livro do Padre José Lopes Mira. Até os títulos gerais de ambos os manuscritos, atrás transcritos, são idênticos. É, portanto, seguro que o manuscrito CXXVIII/2-13e (1) da BPE é uma cópia (parcial) do Livro do Padre José Lopes de Mira, feita pelo mesmo Padre Mira.

Podemos, assim, responder à pergunta inicialmente formulada: que é o Panegírico do infante D. Pedro? Não é, como tem sido acreditado, um texto do século XV, mas sim uma construção de um erudito de finais do século XVIII, o Padre José Lopes de Mira, feita, isso sim, com base em materiais do século XV (uma versão da Crónica Geral de Espanha de 1344 e vários documentos e cartas da mesma época). O texto deste suposto Panegírico cumpriu, inicialmente, a função de introduzir e contextualizar a transcrição de um conjunto de documentos da época de Afonso V, dentro de um conjunto documental mais vasto. Posteriormente autonomizado pelo próprio Padre José Lopes de Mira, possivelmente a pedido de um outro erudito local (Cenáculo?), a sua função inicial perdeu-se. Em meados do século XX, dois estudiosos, Tejada Spínola e Luís da Silveira conheceram-no sob esta forma autónoma e, pelo conteúdo e pela linguagem, julgaram-no um texto quatrocentista. Silveira editou-o e, a partir daí, o estatuto do Panegírico como sendo um texto quatrocentista ficou canonizado.

Podemos, por outro lado, identificar a «cronica antiga manuscrita» do «Cartorio da Camara» [de Évora] a partir da qual o Padre Lopes de Mira construiu o texto que viria a ser conhecido como o Panegírico do infante D. Pedro. Trata-se, certamente, do Cod. CV/2-23 da BPE [BITAGAP manid 1491], que permanece nessa cidade alentejana e é cópia do manuscrito original da versão condestabriana da Crónica de 1344, o ms. «Portugais 9 da Bibliothèque Nationale de France» [BITAGAP manid 1155].

Curiosamente, o Padre José Lopes de Mira não foi o primeiro erudito a utilizar a versão condestabriana da Crónica de 1344 para a construção de relatos históricos. Recentemente, o colega Pedro Pinto, da BITAGAP, localizou, num manuscrito do Palácio da Ajuda, em Lisboa, uma cópia do século XVIII da história dos reis de Portugal dessa mesma versão da Crónica de 1344, igualmente intercalada por diversos documentos e cartas. Está em curso um estudo desse manuscrito da Ajuda, e novas informações aparecerão em futuras atualizações de BITAGAP.

*Esta nota é dedicada ao André Filipe Oliveira da Silva, que, numa época em que me deslocava frequentemente a Évora, me chamou a atenção para os resumos históricos presentes no Livro do Padre José Lopes de Mira.

 

Filipe Alves Moreira
(Instituto de Filosofia/Universidade do Porto
DL57/2016/CP1367/CT002)