Tag: medieval Portuguese history
PhiloBiblon 2024 n. 2 (Fevereiro): Os anais portugueses (séculos XIV-XVI) e a BITAGAP
Filipe Alves Moreira
IF/Universidade do Porto e Universidade Aberta
Como já foi destacado em diversas ocasiões (p. ex., Sharrer 2022), o trabalho da equipa da BITAGAP em bibliotecas e arquivos portugueses e de outros países tem descoberto, (re)localizado e identificado uma grande quantidade de textos e manuscritos de que não havia conhecimento, permitindo assim alargar consideravelmente a base empírica de estudo da cultura galega e portuguesa da Idade Média. Por vezes, essas descobertas dizem respeito não apenas a um texto ou autor em específico, mas a um género textual. É o que sucede com os anais escritos, em língua portuguesa, entre finais do século XIV e inícios do século XVI.
Contrariamente aos anais portugueses escritos em latim durante o século XII e início do XIII, que contam já com diferentes edições e uma sólida investigação que lhes tem sido dedicada (p. ex.: David 1947, Bautista 2009, Furtado 2021), os anais portugueses escritos a partir do século XIV, e especialmente os que foram escritos em português (que são quase todos) estão inéditos ou muito insuficientemente estudados e editados. Existe, até, a ideia de que o género analístico é algo especificamente medieval. Nada mais falso, porém: pelo menos em Portugal, não só continuou a escrever-se anais ao longo dos séculos XVI-XVII, como, até, dir-se-ia que foram mais comuns nessa época, do que anteriormente.
É, todavia, compreensível que os anais em português dos séculos XIV, XV e inícios do XVI estejam ainda inéditos ou insuficientemente editados e não tenham sido estudados: é que a maior parte deles eram completamente desconhecidos, antes das sucessivas atualizações de BITAGAP, ao longo dos últimos dez anos. Foi a BITAGAP que, pela primeira vez, apresentou um corpus de anais escritos em português, muitos deles descobertos e identificados devido às investigações da equipa. Este corpus está facilmente acessível através de uma busca em Obra por “Anais medievais” em “Assunto”.
A mais recente atualização de BITAGAP contém um elenco de 21 destes anais. Como sempre acontece com este tipo de textos, não é fácil estabelecer-se uma cronologia para cada um deles. A maior parte subsiste, aparentemente, em cópias únicas, maioritariamente datáveis do século XVI, mas os acontecimentos históricos mais recentes neles mencionados variam entre finais do século XIV e inícios do século XVI. Quase todos concentram-se na história portuguesa, começando habitualmente, ou com a batalha do Salado (1340), ou com a guerra de Aljubarrota e a ascensão de D. João I ao trono (1385), eventos que assim adquirem estatuto fundacional. São especialmente numerosas as entradas relativas a acontecimentos dos reinados de D. Duarte, D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I. Embora a maior parte dos acontecimentos mencionados por estes anais sejam também conhecidos através de outras fontes históricas, alguns transmitem diversos acontecimentos não mencionados noutros locais, sendo, por isso, especialmente relevantes. Um exemplo interessante é a cerimónia de investidura do infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V e pai de D. Manuel, ocorrida em Lisboa a 10 de agosto de 1456, a qual é descrita, com certo detalhe, em alguns destes anais (segundo já foi comentado por Aguiar 2018). Também não é fácil perceber-se a génese destes textos. Alguns parecem resultar da compilação e/ou continuação de textos analísticos prévios (várias entradas repetem-se, ipsis verbis ou quase); outros, terão sido redigidos e acrescentados à medida que os acontecimentos históricos dignos de registo se iam sucedendo. É também notória a relação destes textos com o género historiográfico por excelência desta época, as crónicas. Com efeito, dos 21 textos atualmente elencados em BITAGAP, 6 estão copiados em manuscritos (ou, no caso do BITAGAP texid 11379, num impresso) que contêm, também, cópias ou sumários de crónicas, especialmente as de Rui de Pina e de Duarte Galvão. Esta circunstância já indicia uma proximidade entre ambos estes géneros, mas uma observação mais atenta poderá estreitá-la ainda mais. Com efeito, existem manuscritos do século XVI que contêm textos formalmente analísticos mas que, segundo explicitam, resultam da abreviação do conteúdo de crónicas (especialmente as de Fernão Lopes, Rui de Pina e Duarte Galvão), constituindo, assim, o que poderá ser apelidado de “sumários analísticos” (um exemplo, já editado, é Costa 1996). Este facto, junto com a evidente proximidade destes textos com as crónicas, seja do ponto de vista material, seja do conteúdo, leva a pensar que alguns dos textos do corpus analístico estabelecido pela BITAGAP podem resultar, também, deste processo, ainda que o não digam. Mas pode também acontecer o contrário, isto é, que alguns destes anais tenham sido fonte das crónicas. Só um estudo aprofundado, que tenha em conta quer a tradição manuscrita dos anais, quer a das crónicas, permitirá afirmar uma destas (ou ambas estas) hipóteses. Estes anais em língua portuguesa serão editados, com notas, introduções e comentários que os contextualizem, numa coleção de textos antigos dedicados à figura de D. Afonso Henriques, em fase de preparação, e serão também tidos em conta pelo projeto Aranhis, que procura integrar os anais portugueses (em português e em latim) com os anais ibéricos.
Vejamos, entretanto, alguns dos anais descobertos pela BITAGAP, e algumas das suas caraterísticas.
Um dos textos mais interessantes, e digno de ponderado estudo (que está a fazer-se) é o BITAGAP texid 18130, convencionalmente apelidado (quase todos os títulos deste corpus são convencionais) de “Descrição do mundo e notícias analísticas”. Trata-se de uma extensa compilação analística, das mais extensas do corpus (só comparável em extensão ao conhecido Livro da Noa–BITAGAP texid 1057–e à chamada Iª Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra–BITAGAP texid 1240). Ocupa 24 fólios na única cópia conhecida, o manuscrito 51-X-22 da Biblioteca da Ajuda (BITAGAP manid 3984), das primeiras décadas do século XVI. É um dos exemplos de associação dos anais às crónicas, pois esse manuscrito inclui, entre outros textos, uma cópia da Crónica de D. João II de Rui de Pina, com notáveis variantes (incluindo o prólogo, que não é de Rui de Pina, mas, possivelmente, do compilador deste manuscrito). Esta compilação analística tem a introduzi-la, e a contextualizá-la, uma descrição do mundo limitada à Europa, Ásia e África (o que estará indicando a sua possível antiguidade) e uma contagem das famosas sete idades do mundo (fólios 111-112, segundo a numeração moderna, que se sobrepôs a uma anterior e não coincidente). A compilação analística propriamente dita segue, grosso modo, uma ordem cronológica, começando pelo nascimento de Alexandre Magno e prosseguindo com diversos acontecimentos da história universal e, sobretudo, peninsular, antes de entrar a tratar do reinado de D. Afonso Henriques, momento a partir do qual as entradas se ocupam de acontecimentos dos sucessivos reinados portugueses, até ao ano de 1525.
A parte inicial desta compilação analística tem evidentes pontos de contacto e mesmo entradas em comum com a chamada Iª Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra e com anais castelhanos, o que revela tratar-se de uma compilação pelo menos parcialmente baseada em textos bem mais antigos. A maior parte (a partir do fólio 115r) desta compilação é, porém, ocupada com acontecimentos do reinado de D. João I e seguintes (e especialmente dos reinados de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel), com algumas entradas referentes a acontecimentos não conhecidos de outras fontes narrativas.
Outro exemplo de associação às crónicas e de uma compilação analística extensa é o conjunto de anais (BITAGAP texid 34129) copiado no ms. Casa Fronteira e Alorna, número 5, da Torre do Tombo (BITAGAP manid 1398). Trata-se de um manuscrito também da primeira metade do século XVI que contém um conjunto de cópias das crónicas de Duarte Galvão e de Rui de Pina (até à de Afonso IV), curiosas porque, frequentemente, copiam apenas o início e o final dos capítulos, originando, as mais das vezes, texto sem sentido. Após a Crónica de D. Afonso IV, surge esta compilação analística, que ocupa os fólios 271v-278v, a qual começa com a batalha do Salado (1340) e termina com a morte da rainha D. Maria, em 1517. Várias entradas são comuns a outros anais e muitas são especialmente dedicadas ao reinado de D. João II, também aqui com acontecimentos nem sempre conhecidos por outras fontes narrativas.
Um terceiro caso interessante é o do texto intitulado “Memoriall dallgũas cousas” (BITAGAP texid 18624), na cópia mais antiga conhecida (COD. 13182 da BNP, BITAGAP manid 1346), uma cópia muito cuidada, com epígrafes a vermelho separando cada uma das entradas. Mais uma vez, estamos perante um conjunto analístico que faz parte de uma miscelânea manuscrita que contém a cópia de uma crónica, neste caso a Crónica de D. Afonso Henriques de Duarte Galvão, entre outros textos (entre os quais uma versão [BITAGAP texid 10498] da célebre Lenda de Gaia já editada e estudada por Ramos 2004). Este conjunto começa com a batalha de Aljubarrota (1385) e termina com o surto de peste de 1520, sendo a maior parte das entradas (algumas extensas e nem todas seguindo a ordem cronológica) dos reinados de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel. Uma particularidade interessante deste manuscrito é a sua proveniência, pois, segundo apurou Ramos 2004, a sua origem está, muito provavelmente, numa comunidade religiosa feminina de Guimarães–o que mostra a circulação alargada deste tipo de miscelâneas, incluindo os textos analísticos nelas copiadas. Desta vez, conhece-se uma outra cópia deste texto, mais tardia (século XVII), com variantes e intitulada “Lembranças antiguas”, no manuscrito 2436 da BNE (BITAGAP manid 5253), fólios 228r a 237r. A entrada mais recente desta cópia é, porém, do ano de 1508, o que, em conjunto com as variantes, levanta o problema de tratar-se, ou não, de uma cópia modificada do manuscrito quinhentista de Guimarães.
Um último caso pode ser relevado, porque, contrariamente aos anteriores, não faz parte de compilações historiográficas, mas sim de uma cópia de documentos. Trata-se de um breve conjunto analístico copiado no fólio 180v do Livro 517 da Alfândega de Vila do Conde, Torre do Tombo (BITAGAP manid 6896), por isso designados como “Anais de Vila do Conde” (BITAGAP texid 25247). Começa, uma vez mais, com a batalha do Salado, e termina com a vinda do duque de Lencastre à Península Ibérica, no contexto das lutas pela sucessão dos tronos de Portugal e de Castela, no final do século XIV. Antecede estes anais uma lista dos cavaleiros portugueses que estiveram presentes na conquista de Ceuta (1415), mas, de facto, a maior parte deste manuscrito é de documentos relacionados com a atividade da alfândega de Vila do Conde, nos séculos XV e XVI. É interessante, por isso (e relevante), a presença de anais num manuscrito deste tipo.
Referências
Aguiar, Miguel (2018). Cavaleiros e Cavalaria. Ideologia, práticas e rituais aristocráticos em Portugal nos Séculos XIV e XV. Porto: Teodolito.
Bautista, Francisco (2009). “Breve historiografía: listas regias y Anales en la Peninsula Iberica (Siglos VII-XII)”. Talia Dixit. Núm. 4, pp. 113-90: https://publicaciones.unex.es/index.php/TD/article/view/213
Costa, José Pereira da, ed. (1996). Crónicas dos Reis de Portugal e Sumários das suas vidas: D. Pedro I, D. Fernando, D. João I, D. Duarte, D. Afonso V, D. João II / Gaspar Correia. Lisboa: Academia das Ciências.
David, Pierre (1947). Études Historiques sur la Galice et le Portugal du VI au XII siécle. Paris: Institut Français au Portugal.
Furtado, Rodrigo (2021). “Writing history in Portugal before 1200”. Journal of Medieval History. Vol. 47, Issue 2, pp. 145-73: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/03044181.2021.1902375
Ramos, Maria Ana (2004). “Hestorja dell Rej dom Ramjro de lleom”…. Nova versão de “A Lenda de Gaia”. Critica del Testo. Romània romana. Giornata di studi in onore di Giuseppe Tavani. Vol. 7 n. 2, pp. 791-843.
Sharrer, Harvey L. (2022). “BITAGAP (Bibliografia de Textos Antigos Galegos e Portugueses): um armazém da memória histórica” in R. Pichel (ed.), Tenh’eu que mi fez el i mui gran ben. Estudos sobre cultura escrita medieval dedicados a Harvey L. Sharrer. Madrid: Sílex, pp. 39-67.